quarta-feira, agosto 10, 2005

bentevi*

Devia ter uns seis ou oito anos; fiz uma asneira de que já não me lembro e, para escapar ao castigo, fugi. Meti-me num comboio à socapa; ia saindo em várias estações para fintar os revisores, retomando a marcha sempre para sul. Foi assim que chegeui ao Algarve. Mas a fome, que ia sendo enganada durante a viagem com a ajuda dos farníes de alguns companheiros, começou a apertar; e resolvi-me a tomar um emprego. A oportunidade surgiu num botequim onde espreitava alguma sobra: um cego, desses que pedem na rua, estava encostado ao balcão, à espera do seu copo de tinto. Reparei que o dono não lhe enchia o copo; e segredei-lhe baixinho: O copo não está cheio! Ele então falou bem alto: Ó senhor! Então quer enganar um cego? Porque não me enche o copo? O dono aproximou-se, e enquanto abria a garrafa disse-lhe que de cego ele tinha pouco. É que há coisas, senhor, que até os cegos vêem!
Tornei-me então moço de cego. Fazia os recados, contava o dinheiro, vivia na rua. Como não quis dizer o meu verdadeiro nome, quando ele me perguntou como me chamava respondi: Bentevi. Já viste uma coisa destas? Tu chamas-te Bentevi; e eu não te posso ver!.
A vida como moço de cego era dura, e eu começava a sentir saudades de casa. Talvez a minha falta não tivesse sido assim tão grave; talvez o castigo fosse mais suave do que a fuga. Comecei então a urdir um plano para me escapar; para além de ir juntando algumas moedas, precisava ainda de me livrar do cego, que nunca me deixava ir para longe.
O plano ganhou asas num domingo, enquanto assistíamos à missa. De tempos a tempos, o meu protector chamava:
- Bentevi!
- Senhor!
- Deixa-te ficar aí.
A certa altura afastei-me, enquanto no púlpito o padre falava dos milagres da igreja. Fiquei junto à porta, pronto a voltar atrás a qualquer momento. Mais uma vez ele deve ter dito: Bentevi!, porque comecei a vê-lo a ficar cada vez mais inquieto com a falta de resposta; até que começou a chamar cada vez mais alto. Bradava já o meu nome, Bentevi!, Bentevi! Ao seu lado, maravilhadas, as beatas ajoelharam:
- Milagre, milagre, o cego vê!

*esta história é dedicada ao meu avô, a quem a ouvi muitas vezes; era a única pessoa neste mundo que me chamava minha flor.

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